*matéria de capa da CartaCapital desta semana.
Restritas ao noticiário local de Goiânia, as informações sobre uma
“minirreforma” no secretariado do governador de -Goiás, Marconi Perillo
(PSDB), são o primeiro sinal de que suas ligações com o esquema
-conjunto do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e do bicheiro Carlos
Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, prometem levar a crise para dentro
do governo goiano.
Transformado em menos de um mês em zumbi político, Torres agoniza
pelos corredores do Senado, agora sob risco de ser cassado. Mas não deve
naufragar sozinho, se as investigações da Polícia Federal forem
aprofundadas. Novos documentos, gravações e perícias que integram o
relatório da Operação Monte Carlo, revelados com exclusividade por
CartaCapital, apontam uma total sinergia entre o esquema do bicheiro, o senador e o governo de Marconi Perillo.
Em conversas telefônicas, o bicheiro jacta-se da influência sobre
Marconi Perillo e sempre recorria a Demóstenes Torres, vulgo "gordinho".
Perillo (foto) nega relações com esquema. Foto: Gustavo Moreno/CB/D.A
Press
Em uma interceptação telefônica de 5 de janeiro de 2011, os agentes
federais registraram uma conversa entre Cachoeira e seu principal
auxiliar, Lenine Araújo de Souza, vulgo Baixinho. Na conversa, o
bicheiro, a partir de um telefone em Miami, recebe a notícia de que um
de seus indicados para o governo de -Goiás, identificado apenas por
Caolho, acabou preterido, sem maiores explicações e aparentemente sem o
conhecimento do governador. Segundo homem na hierarquia e braço
operacional de Cachoeira, Souza administrava e operava o sistema de
contabilidade da quadrilha. Também era responsável pelo pagamento de boa
parte das propinas a agentes públicos, em troca de proteção e
informação.
Torres considera-se um "cadáver político". foto: José Cruz/ABr
“Marconi, hora que souber disso (
sic), vai ficar puto”, reclama o bicheiro, no telefonema a Souza. E acrescenta, a seguir: “Já mandei avisar ele (
sic)”.
Mas adiante, revela, por duas vezes, a ordem dada ao senador Torres
para entrar no caso e falar diretamente com o governador. “O Demóstenes
já está ligando para ele”, garante Cachoeira.
Mais adiante, no mesmo grampo, o bicheiro pede a Souza para tomar
providências e entrar em contato com Eliane Gonçalves Pinheiro, chefe de
gabinete do governador. Ela chegou ao cargo no início do ano passado,
depois das eleições de 2010, na qual foi responsável -pela arti-culação
do tucano para que prefeitos do PP aderissem à campanha do PSDB ao
governo estadual. Até então, era ligada ao ex–secretário extraordinário
de Assuntos Estratégicos de Goiás Fernando Cunha, importante liderança
tucana no estado, falecido em novembro de 2011. Segundo as investigações
da PF, uma filha de Cunha é casada com um irmão de Cachoeira.
Outra interferência direta do bicheiro no governo, revelada nos
grampos da PF, tem relação com a atuação do coronel Vicente Ferreira
Filho, comandante do 3º Comando Regional da Polícia Militar, em
Anápolis. Souza refere-se à preocupação de um certo “Ananias”,
provavelmente um dos prepostos da jogatina na cidade, com a atuação do
oficial. “O Ananias está demonstrando preocupação com o Vicente em
Anápolis, hein”, avisa.
Cachoeira informa então a providência tomada. “Já mandei (
inaudível),
inclusive vai falar com Marconi, hoje à tarde”, diz o bicheiro. Em
seguida, tranquiliza o auxiliar sobre a possibilidade de o coronel da PM
atrapalhar os negócios em Anápolis, segundo a transcrição da PF. “Não
vai, não. Esse comandante pra nóis (
sic), ainda vai ser bom. Cê vai ver (
sic).” Não há, contudo, nenhuma acusação contra o coronel nos autos da Operação Monte Carlo.
Ciente da encrenca em que está metido, Perillo decidiu usar como
desculpa a desincompatibilização do atual secretário de Meio Ambiente,
Leonardo Vilela, candidato do PSDB à prefeitura de Goiânia, para mexer
na equipe e apagar os rastros de Torres e Cachoeira em seus domínios.
Assim, a amiga do bicheiro, Eliane Pinheiro, chefe de gabinete de
Perillo, deverá deixar o cargo em breve, sob a improvável promessa de
mudar de função. Outro que deve sair e colocar as barbas de molho é o
secretário de Infraestrutura, Wilder Morais. Suplente de Torres, poderá
assumir a vaga no Senado caso o titular venha a ser cassado.
Será uma vingança e tanto. A mulher de Morais, Andressa, o abandonou
no ano passado para viver com Cachoeira. O drama matrimonial chegou a
servir de desculpa para o senador Torres -justificar os 298 telefonemas
que trocou com o bicheiro nos últimos seis meses. Morais também tomou
medidas preventivas e afastou Leandro Gomes Candido do cargo de
secretário-executivo da pasta. Candido é marido de uma irmã de Andressa.
Cachoeira se valia dos serviços do araponga Dadá (acima). Foto: Antonio Cruz/ABr
Outro da lista é o secretário da Indústria e Comércio, Alexandre
Baldy, indicação pessoal de Torres. Baldy é genro do empresário Marcelo
Limírio, sócio do senador do DEM em uma faculdade em Goiás. Ex-dono do
Laboratório Neo Química, em Anápolis, segunda maior cidade do estado, o
secretário mantém ainda uma sociedade com Cachoeira na ICF, empresa
fornecedora de testes para laboratórios. Um deles, o Vitapan, de
propriedade do bicheiro, era utilizado para lavagem de dinheiro do
esquema de jogatina, segundo informações da PF.
“É assustador o alcance dos tentáculos da organização criminosa”,
escreveu em 23 de fevereiro deste ano o juiz Paulo Augusto Moreira Lima,
da Vara Federal de Anápolis, responsável pela condução processual do
inquérito. Segundo o magistrado, “para dar suporte à exploração ilegal
de máquinas caça-níqueis, bingos de cartelas e jogo do bicho em Goiás” a
quadrilha de Cachoeira montou um incrível esquema de lavagem de
dinheiro, evasão de divisas, contrabando, corrupção, -pe-culato,
prevaricação e violação de sigilos.
Ainda de acordo com Lima, o grupo de Cachoeira era altamente
“profissionalizado, estável, permanente, habitual, estruturado, montado
para cometer crimes graves”. Para tal, mantinha uma “estrutura
organizacional e piramidal -complexa” que funcionava graças a uma
“estrutura estável, entranhada no seio do estado com, inclusive, a
distribuição centralizada de meios de comunicação para o desenvolvimento
das atividades, com o objetivo de inviabilizar a interferência das
agências sérias de persecução”.
Logo após ser preso, o juiz determinou que Cachoeira fosse
transferido para um presídio federal de Mossoró (RN) porque, na petição à
Justiça Federal, os procuradores do caso temiam que ele continuasse a
comandar o esquema criminoso de dentro de uma prisão de -Goiás. “Em mais
de uma década, Carlinhos Cachoeira dedicou-se a comprar informações e
proteção de agentes do estado vendíveis. Em outras palavras, tornou a
sociedade e o próprio estado mais vulneráveis ao crime”, escreveu Lima.
Os números listados na Justiça Federal falam por si só do tamanho da
investigação que une os negócios de Cachoeira com a rotina do governo de
Goiás. Ao todo foram identificados como integrantes da quadrilha do
bicheiro 43 agentes públicos. Desses, seis delegados da Polícia Civil,
30 policiais militares, dois delegados da PF, um administrativo da PF,
um policial rodoviário federal, dois agentes da Polícia Civil e dois
servidores municipais. A Monte Carlo gerou 36 volumes de interceptação
telefônica, 14 volumes de inquérito policial, três volumes de sigilo
bancário e fiscal, além de uma centena de relatórios produzidos pela PF.
Procurado por
CartaCapital, o governador Perillo respondeu,
via assessoria de imprensa, não possuir nenhuma ligação com o bicheiro.
Sobre indicações de Cachoeira para cargos no governo, saiu-se com essa:
“Que eu tenha sido informado, não”. Também negou ter havido pressão de
Demóstenes Torres para a nomeação de apadrinhados do bicheiro no governo
estadual. Por fim, negou ter iniciado uma reforma no secretariado.
Seriam “apenas substituições pontuais de auxiliares que serão candidatos
nas próximas eleições”.
Interceptações telefônicas realizadas pela Polícia Federal mostram
intervenção de Cachoeira no governo de Goiás. Foto: Gustavo miranda/ Ag.
O Globo
Enquanto isso, a agonia de Torres parece não ter fim. Na sexta-feira 23, -
CartaCapital
revelou em seu site que a Polícia Federal sabia desde 2006 de suas
ligações com Cachoeira. Três relatórios assinados pelo delegado
Deuselino Valadares dos Santos, então chefe da Delegacia de Repressão a
Crimes Financeiros da Superintendência da PF em Goiânia, revelam que
Torres tinha direito a 30% da arrecadação geral do esquema de jogo
clandestino, calculada em aproximadamente 170 milhões de reais nos
últimos seis anos. A informação consta de um Relatório Sigiloso de
Análise da Operação Monte Carlo, sob os cuidados do Núcleo de
Inteligência Policial da Superintendência da PF em Brasília.
Valadares
foi um dos 35 presos em 29 de fevereiro na esteira da operação. Nas
interceptações telefônicas feitas pela PF com autorização da Justiça,
ele é chamado de Neguinho pelo bicheiro. Por estar lotado na delegacia
de repressão a crimes financeiros, era responsável pelas operações
policiais da Superintendência da PF em todo o estado. Ao que tudo
indica, foi cooptado para a quadrilha após descobrir os esquemas de
Cachoeira, Torres e mais três políticos goianos também citados por ele
na investigação: os deputados federais Carlos Alberto Lereia (PSDB),
Jovair Arantes (PTB) e Rubens Otoni (PT).
Em outro grampo da PF, revelado agora por
CartaCapital, de
13 de março de 2011, Cachoeira conversa com Idalberto Matias de Araújo, o
Dadá, sargento da reserva da Aeronáutica, também preso durante a
Operação Monte Carlo. Ele era responsável por obter informações
sigilosas de interesse da quadrilha de Cachoeira em troca de um
pagamento mensal de 5 mil reais. No grampo, Dadá manda o bicheiro
“tranquilizar” Torres. Falava possivelmente da investigação da PF sobre o
esquema criminoso.
A informação, proveniente de uma mulher não identificada na conversa,
é tachada de “exagerada” pelo araponga da Aeronáutica. “Investigações a
baixo nível, entendeu, só a termos de conhecimento”, diz Dadá. “Então,
excelente, vou passar para o GORDINHO a informação”, diz o bicheiro. O
apelido, segundo a PF, era o código para se referir ao senador do DEM
nas conversas entre os dois. Até 2009, Torres pesava 103 quilos. Perdeu
30 quilos após se submeter a uma cirurgia de redução do estômago.
Os deputados Lereia, do PSDB, e Otoni, do PT, também integrariam o esquema. Fotos: Beto Oliveira e Carlos Moura/D.A.Press
Uma série de outras reportagens divulgada nos últimos dias complicou ainda mais a vida do senador. O jornal
O Globo publicou
transcrições de interceptações telefônicas nas quais Torres pede ao
bicheiro, com quem se comunicava por meio de um aparelho de rádio
registrado em Miami, 3 mil reais para pagar despesas de táxi aéreo.
O diário carioca revelou ainda que o parlamentar do DEM usou de seu
prestígio para tentar remover, em 2009, um dos principais agentes de uma
das investigações sobre a exploração ilegal de máquinas caça-níqueis e
videopôquer chefiada por Cachoeira. Tratava-se do policial federal José
Luiz da Silva. Torres solicitou ao então secretário de Assuntos
Legislativos, Pedro Abramovay, a transferência do agente de Anápolis,
área de atuação de Cachoeira, para Goiânia.
Uma reportagem do
Jornal -Nacional jogou mais cal sobre a
cova do senador, que já admitiu estar “morto politicamente” por causa
das denúncias. Trechos de interceptações da Monte Carlo revelam que
Cachoeira, em conversa com o contador Giovani Pereira da Silva, pode ter
repassado mais de 3 milhões de reais ao senador do DEM.
É possível que em breve venha à tona outra faceta do grupo: o uso de
meios de comunicação para atacar adversários. Sabe-se das boas relações
de Cachoeira com jornalistas de Brasília, em especial o diretor da
sucursal da revista
Veja, Policarpo Jr. Segundo blogs da
internet, a Polícia Federal teria interceptado mais de 200 telefonemas
entre o jornalista e o bicheiro durante o curso das investigações.
Nos inquéritos aos quais
CartaCapital teve acesso, Policarpo
Jr. é citado mais de uma vez. Em um grampo de 8 de julho de 2011,
Cachoeira instrui o sargento Jairo Martins, da PM de Brasília, -para
-estancar as informações repassadas ao jornalista. O bicheiro teria se
chateado com algum texto publicado na revista. Martins é um famoso
araponga brasiliense, acostumado a prestar serviços clandestinos no
submundo da comunidade de informações. Foi ele quem, por exemplo, gravou
o vídeo em que o ex-funcionário dos Correios Maurício Marinho aparece a
embolsar 3 mil reais de propina. Indicado pelo PTB, Marinho foi o
estopim do escândalo do chamado mensalão.
O futuro de Torres depende da Pro-curadoria-Geral da República e do
Congresso Nacional. Desde 2009, sem nenhuma explicação plausível, o
procurador-geral Roberto Gurgel mantinha engavetado um relatório da PF
referente à Operação Las Vegas, de 2008, na qual a ligação entre
Cachoeira e o senador era -explicitada pela primeira vez em
interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça de Goiás. Diante da
pressão provocada pelas revelações da Operação Monte Carlo, Gurgel foi
obrigado, na quarta-feira 28, a dar seguimento à denúncia, enviada ao
Supremo Tribunal Federal.
No Congresso, o destino de Torres está nas mãos do líder do PMDB,
Renan Calheiros, e do presidente do Senado, José Sarney, que precisam
recompor o Conselho de Ética do Senado. O órgão está acéfalo desde
setembro de 2011, razão pela qual ainda não se pode apreciar a
representação contra Torres apresentada na quarta-feira 28 pelo senador
Randolfe Rodrigues (PSOL). Segundo Rodrigues, está claro que Cachoeira
mantém relações “amplas, gerais e irrestritas” com Torres e outras
autoridades.
Tão logo o impasse burocrático seja resolvido, o processo de cassação
do senador goiano, dado como certo até pelos aliados mais próximos, vai
ser iniciado. Torres renunciou à liderança do DEM no Senado e corre
risco de ser expulso do partido.